Por Agostinho Muchave
“As convicções são mais perigosas inimigas da verdade do que as mentiras.” — Friedrich Nietzsche, em Além do Bem e do Mal
No teatro político moçambicano contemporâneo, há um desfile inquietante de máscaras que, dia após dia, transfiguram os rostos da verdade. As vozes que se dizem defensoras do povo, que ostentam títulos e insígnias como se fossem brasões de honra, escondem, sob os seus discursos floridos, os mais sombrios apetites de domínio. Nietzsche, com o seu bisturi filosófico, poderia facilmente diagnosticar o actual estado da nossa república: um palco de vaidades onde os mais elevados cargos servem de esconderijo para os mais baixos instintos.
Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche rasga os véus do moralismo hipócrita, alertando que os homens que se julgam bons são muitas vezes os mais perigosos, porque agem revestidos de autoridade ética. E não é isso que se vive em Moçambique, onde a palavra do dirigente, por vezes, substitui a Constituição, onde o partido se confunde com o Estado, e onde os que matam, manipulam e saqueiam o erário público fazem-no com a arrogância de quem se sente investido de legitimidade divina?
No país dos “donos da verdade”, como se autodenominam muitos actores da nossa política e sociedade civil, a morte não tem apenas um cheiro — tem um discurso. Morre-se no hospital sem medicamentos, morre-se de fome nos bairros periféricos, morre-se com tiros à queima-roupa em esquinas sombrias — mas tudo é empacotado como “incidentes” ou “fatalidades sociais”. Não há culpados. O mal tornou-se sofisticado, usa gravata, frequenta palácios, e prega a moral nos púlpitos públicos.
Nietzsche fala da “vontade de potência” como força motriz do ser humano. Em Moçambique, essa vontade tem-se materializado num apetite insaciável pelo poder, onde a política é o trampolim para o enriquecimento ilícito e a perpetuação de dinastias. Quando a governação passa a ser uma sucessão de gestos performativos — entregas de kits escolares enquanto as escolas se afundam, cortes de fitas em centros de saúde sem médicos, campanhas de moralização feitas por imorais —, é porque o niilismo já se instalou no coração do Estado.
O quotidiano moçambicano é hoje a negação viva da ideia de progresso. Não porque não se construa, mas porque se destrói mais nas sombras do que se constrói à luz do dia. O mal é sistemático, organizado, institucionalizado. E pior: é legitimado por um povo que, cansado e anestesiado, já não distingue o predador do protector.
Nietzsche denuncia os filósofos dogmáticos que criam ilusões confortáveis — e em Moçambique abundam os profetas da esperança ilusória. Os que anunciam “aceleração do desenvolvimento”, enquanto os índices de pobreza crescem. Os que apregoam “reformas na justiça”, enquanto os tribunais servem para perseguir opositores e proteger delinquentes de colarinho branco. O mais sinistro é que a tragédia se tornou habitual. A sociedade já não se escandaliza: ajusta-se, adapta-se, corrompe-se.
O filósofo alemão também desmascara a “compaixão pelos sofredores” quando ela é apenas estratégia para manter o Status quo. A caridade que se pratica nos corredores do poder moçambicano — bolsas de estudo para os filhos dos amigos, ajuda alimentar às vítimas de cheias com recursos desviados — é, no fundo, um insulto à dignidade. Uma forma de manter o povo dependente, grato, silencioso.
E onde estão os intelectuais? Os que deviam gritar contra a barbárie? Muitos se vendem por projectos, por cargos, por viagens. Outros, domesticados, refugiam-se em academias que não dialogam com o país real. O pensamento crítico foi substituído pela reverência — tal como Nietzsche criticou os filósofos bajuladores dos poderosos, que disfarçam servilismo com erudição.
Entretanto, a “vontade de verdade” — que Nietzsche expõe como desejo de poder mascarado — manifesta-se aqui nos discursos oficiais que clamam transparência e reforma. Mas, como diria o filósofo, muitas vezes o discurso da verdade não é mais do que uma armadilha lógica, um instrumento de domínio, uma nova forma de mentira.
E assim vamos, em Moçambique, para além do mal — não no sentido de o superarmos, mas de o normalizarmos. A moral pública tornou-se espectáculo. Os criminosos ganham medalhas, os honestos são desacreditados. E o povo? Esse assiste, entre a resignação e o desespero, esperando que alguém — um dia — tenha a coragem de dizer, como Nietzsche: “não há factos morais, apenas interpretações morais dos factos.”
Talvez ainda seja tempo de escancarar as janelas da consciência colectiva, como Zaratustra desceu do monte para falar ao povo. Talvez seja tempo de construir uma filosofia do futuro que não caia no erro dos dogmáticos nem se submeta ao jugo dos pragmáticos de ocasião. Uma filosofia que recuse tanto o desespero como a hipocrisia. Uma ética que desafie a ordem estabelecida. Uma coragem que encare o abismo e, ainda assim, não se deixe consumir por ele.
Porque, como ensinou Nietzsche, quem luta com monstros deve cuidar para não se tornar também um monstro. E quando olhamos longamente para o abismo… o abismo também olha para nós.
Nota editorial: Esta crónica integra-se na série “Pensar Moçambique” – Agostinho Muchave, dedicada à crítica dos paradigmas sociopolíticos contemporâneos à luz da filosofia.