Inaugurada com pompa em 2018 e considerada a maior fábrica de comboios do continente africano, a unidade de Dunnottar prometia transformar a mobilidade regional — mas os resultados permanecem confinados ao mercado interno sul-africano.
Por Redacção | 29 de Julho de 2025
Em 2018, a África do Sul anunciou ao continente e ao mundo a inauguração da maior fábrica de comboios e carruagens de passageiros de África, instalada na localidade de Dunnottar, província de Gauteng. Com capacidade para produzir dois comboios por dia, a fábrica foi financiada com 25 milhões de dólares norte-americanos, provenientes de investimentos sul-africanos e franceses. A obra, concluída em apenas 22 meses, empregava 1200 trabalhadores — a maioria com menos de 35 anos — e foi saudada como um marco no processo de industrialização africana.
Hoje, sete anos depois, surge uma pergunta incontornável: onde estão os frutos dessa promessa?
A fábrica da Gibela Rail Transport Consortium, uma parceria entre a multinacional francesa Alstom e a uBumbano Rail, foi apresentada como um catalisador de desenvolvimento económico e integração regional. Esperava-se que países como Moçambique, Angola, Zâmbia e outros membros da SADC aproveitassem a proximidade geográfica para modernizar as suas redes ferroviárias, adquirindo comboios, carruagens e componentes fabricados no país vizinho. Contudo, essa integração regional nunca se concretizou.
Uma Indústria Sem Trilhos Regionais
Apesar da grande capacidade de produção, os comboios da Gibela continuam limitados quase exclusivamente ao mercado interno, servindo à operadora nacional sul-africana PRASA. Até hoje, não se registaram aquisições significativas por parte de países vizinhos. A ausência de infraestruturas ferroviárias interligadas entre a África do Sul e os seus parceiros da SADC tem-se revelado um dos maiores entraves. Sem linhas férreas modernas, interoperáveis e seguras, os comboios não têm para onde ir, mesmo que estejam disponíveis.
Além disso, os elevados custos de logística e manutenção, aliados à falta de harmonização técnica e regulatória entre os sistemas ferroviários africanos, impedem uma expansão natural do mercado.
Contraste com Outros Modelos Globais
Ao comparar com regiões como a União Europeia, onde trens de alta velocidade circulam entre países graças a políticas de integração e investimento conjunto, o panorama africano revela-se fragmentado e descoordenado. A Alemanha, França e Itália partilham fabricantes (como Alstom, Siemens e Hitachi Rail) e linhas interconectadas. Na Ásia, a China não apenas construiu uma rede nacional robusta, mas também exporta tecnologia ferroviária para países vizinhos via a sua Iniciativa do Cinturão e Rota, com impactos visíveis no Sudeste Asiático e África Oriental.
Mesmo na América Latina, o Brasil — que forneceu comboios à África do Sul antes do projecto Gibela — mantém linhas regionais que ligam centros industriais e portos estratégicos.
As Promessas de Ramaphosa
Na inauguração de 2018, o Presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, destacou que a União Africana tinha confiado à África do Sul o papel de liderar o renascimento industrial do continente. A fábrica de comboios era tida como símbolo dessa responsabilidade. “É hora de deixarmos de importar soluções para começar a construí-las em casa”, disse na ocasião.
Contudo, a realidade pós-inauguração diverge dos discursos visionários. Sem uma política continental articulada, os projectos industriais permanecem ilhas isoladas num oceano de obstáculos logísticos, políticos e estruturais.
E Moçambique? Onde Entra?
Moçambique, vizinho directo da África do Sul, tem necessidades urgentes de transporte ferroviário — tanto para mobilidade urbana em Maputo e Beira, quanto para a expansão de corredores logísticos como o de Nacala, Sena e Limpopo. Ainda assim, não se registam aquisições de material ferroviário proveniente da Gibela. A dependência de infraestruturas obsoletas e a escassa cooperação institucional regional impedem avanços tangíveis.
Enquanto isso, continuam a chegar locomotivas e carruagens de parceiros como China, Índia ou até mesmo Rússia, muitas vezes sem criar qualquer sinergia com os projetos existentes no continente.
A Solução Passa por Integração
Para que a fábrica de Gibela não se torne um monumento ao fracasso da integração africana, é preciso mais do que linhas de produção: é necessário alinhar políticas públicas, construir corredores ferroviários interligados, promover compras públicas regionais e criar incentivos ao comércio intra-africano.
A criação da Zona de Comércio Livre Continental Africana (AfCFTA) é uma oportunidade que não pode ser desperdiçada. Com ela, surgem possibilidades reais de fomentar cadeias de valor regionais e dinamizar o transporte ferroviário como eixo estratégico de desenvolvimento.
Sete anos depois da sua inauguração, a fábrica Gibela permanece como um exemplo de potencial industrial mal aproveitado. É hora de a África do Sul e os seus vizinhos olharem para além das suas fronteiras, perceberem o valor da integração e agirem com urgência. Caso contrário, a tão falada revolução industrial africana continuará apenas nos discursos, e não nos trilhos.




