Um dos idiomas mais utilizados no mundo, o português é motivo de admiração de seus falantes e, ao mesmo tempo, de preocupação. Se obras da literatura e da música produzidas nessa língua são ovacionadas por diferentes povos, não são poucos os que crêem não saber usar o idioma. Machado de Assis e Carolina Maria de Jesus, brasileiros, José Saramago e Florbela Espanca, portugueses, e Mia Couto e Noémia de Sousa, moçambicanos, por exemplo, são autores que escrevem em língua portuguesa (cada um de seu modo e em seu tempo) e são bastante conhecidos pelo mundo; “Coisinha do pai”, música composta pelos brasileiros Jorge Aragão, Almir Guineto e Luís Carlos, eternizada por Beth Carvalho, foi escolhida pela NASA para acordar o robô Sojourner em Marte. Mas, apesar de tão expressiva, há, sobretudo no Brasil, muita gente que acredita não dominar o português que usa…
Por quais motivos isso acontece?
Há um preconceito social (e, por conseguinte, geográfico, sexista, racial) que se manifesta também na língua. As regras estabelecidas para o português oficial do Brasil diferem muito do uso que é feito pelos brasileiros (de todas as classes sociais em diferentes situações comunicativas), fazendo com que haja a impressão de que, a despeito da competência comunicativa para estabelecer interacções sociais, muita gente (inclusive diplomada) seja levada a supor que desconhece a língua que utiliza. Trata-se de uma visão elite-centrista de mundo que, também, pelos usos linguísticos visa a excluir as pessoas das oportunidades e, sobretudo, das decisões sobre os destinos do país. Questões semelhantes, com suas especificidades, também são observadas em países africanos.
Os questionamentos não são de hoje sobre a divergência entre a gramática à lusitana e a gramática à brasileira.
Oswald de Andrade, um dos maiores poetas do Brasil, nos anos de 1920, escreveu “Pronominais”:
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
Reparem na oposição de usos: “dê-me”, segundo as regras gramaticais impostas, e “me dá”, segundo as convenções entre os falantes do país. Não é que as pessoas não saibam falar; na verdade, as regras estabelecidas para este país, com muita frequência, não têm nada a ver com o modo como o português brasileiro se desenvolveu. O que está errado, nesse caso (e em tantos outros), é o descompasso entre a gramática vigente (a que vale oficialmente) com a gramática do português brasileiro. Em outras palavras, não é o falante de português que tem de mudar o jeito de falar, mas, de acordo com pesquisas sérias, certas regras gramaticais que devem ser alteradas. O estudioso brasileiro Marcos Bagno, autor de tantas obras acerca de língua, escreveu em Gramática Pedagógica do Português Brasileiro:
O cérebro humano é extremamente organizado, de modo que, ao contrário do que tanta gente pensa, é simplesmente impossível falar sem obedecer regras gramaticais. O problema está em acreditar que as únicas regras gramaticais são as poucas, pouquíssimas, descritas (mal descritas) e prescritas pela tradição gramatical. (p.96)
O português existe, como idioma, há séculos, nem por isso, no Brasil ou em Portugal, em Angola, em Moçambique, por exemplo, se fala actualmente como se falava em 1.500! Camões, um dos mais importantes poetas portugueses de todos os tempos, recitava quinhentos anos atrás, em um de seus mais conhecidos sonetos, um alerta: a mudança é inevitável na vida (por que na língua não seria?):
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Muda-se o ser, muda-se a confiança
Todo o Mundo é composto de mudança
Tomando sempre novas qualidades
Aliás, por falar em 1.500, é bom lembrar que a língua oficializada aqui é a do povo opressor (que dizimou indígenas e escravizou africanos). Em se tratando de povos dessas etnias, inclusive, é necessário ressalvar que o português do Brasil é resultante de várias contribuições linguísticas. A professora Yeda Pessoa de Castro, da Universidade Federal da Bahia, desde os anos de 1970, vem escrevendo sobre as influências das línguas africanas sobre o português brasileiro, que não são apenas vocabulares; muito mais do que pensar na relevância de palavras como “caçula” (quem usa “benjamim”,
em terras brasileiras, para se referir ao irmão mais novo de uma família?), é necessário tomar conhecimento de que as contribuições africanas têm a ver com o modo como se organiza a sintaxe de nosso idioma neste solo.
A ocasião é propícia para que, festejando o Dia Mundial da Língua Portuguesa, possamos também ladear o idioma oficial de países de quatro continentes (além dos irmãos na África, temos o Timor-Leste, na Ásia, além de nós na América e os portugueses na Europa) com idiomas falados nesses lugares (e em outros, mas como não como língua oficial do país). Aliás, é oportuno lembrar que o idioma lusitano se abrasileirou em nosso país e ganhou especificidades em outros lugares do planeta. A diversidade nos une sob a mesma língua – na origem, ao menos.
Para encerrar esta breve reflexão, julgo apropriado rememorar José Craveirinha.
Amigos:
As palavras mesmo estranhas
se têm música verdadeira
só precisam de quem as toque
ao mesmo ritmo para serem
todas irmãs
E eis que num espasmo
De harmonia como todas as coisas
Palavras rongas e algarvias ganguissam
Neste satanhoco papel
E recombinam em poema.
O poeta moçambicano lembra que é possível fazer poesia em “ronga*” (língua de Moçambique) ou em “algarvia” (alusão a Portugal). Ambas, como diz a voz poética, “ganguissam” (“namoram”, na língua ronga) no papel “satanhoco” (de origem “ronga”, mas explicitamente demonstrando, em sua formação, a união entre as línguas lusitana e africana, significando “diabo”, “sacana”). Como resultado, o fruto dessa relação profana, contra todos os purismos gramaticais, entre vocábulos de línguas – por conseguinte, culturas tão distintas – se “recombinam” no poema e no cotidiano do país moçambicano. Aprendamos com o mestre da poesia a dialogar, poeticamente, em português (português brasileiro, português moçambicano…), nessa data, com outras línguas e a praticar, a partir do idioma, as linguagens da solidariedade, da compreensão, da inclusão, da equidade, do conhecimento…
Fábio Roberto Ferreira Barreto
Professor (SME-SP) e Mestre em Literatura (USP)
*De acordo com Armindo Ngunga e Madalena Cítia Simbine, autores do livro Gramática Descritiva da Língua Changana: “Shangaana-Tsonga (60/4) é um grupo linguístico que inclui três línguas mutuamente inteligíveis faladas principalmente nas três províncias moçambicanas do sul do Save (Inhambane, Gaza e Maputo), nomeadamente: Rhonga (60/4/1), Changana ou Tsonga (60/4/2) e Tshwa (60/4/3)” (p.18).
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