Fatos editoriais e movimentos periféricos literários
A CBL (Câmara Brasileira do Livro) divulgou – na segunda quinzena de junho – a “Pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro com dados de 2020”, apresentando, também, uma panorâmica sobre o “mercado nos últimos 15 anos”. Recente e repleta, porém, incompleta. Se sobram números, faltam letras, sobretudo, em um importante segmento: o da produção literária periférica paulistana.
A despeito de os números sobre a circulação de livros de autores independentes não serem aferíveis – ao menos pela metodologia empregada pela CLB –, creio que a expressiva produção e, por conseguinte, venda de obras literárias no circuito periférico na Capital paulista (bem como na Grande São Paulo) não seja novidade a ninguém do setor. De mão em mão, há autores que vendem centenas e até milhares de exemplares de suas obras em saraus, slams e eventos de rua – especialmente nos extremos da cidade, como Allan da Rosa e Helena Silvestre, finalistas do Jabuti, respectivamente, nas edições de 2018 (Categoria Infantil e Juvenil) e 2020 (Crônica).
Grandes Editoras – não é de hoje – se aproximaram desse fenômeno cultural. A Global lançou a Coleção Literatura Periférica em 2007, da qual Sérgio Vaz (cofundador do Sarau da Cooperifa) foi o primeiro a ser publicado – e, diga-se de passagem, é dos que mais vendem da empresa como um todo. A Companhia das Letras, que – já faz um tempo – sonda o circuito periférico, reeditou o clássico Capão Pecado, de Ferréz, no final de 2020, e publicou a antologia As 29 poetas hoje, no início de 2021 (do qual participam expressivas autoras e ativistas, como Dinha, e, ao mesmo tempo, articuladoras culturais, como Elizandra Souza, do Sarau das Pretas, e Luz Ribeiro e Mel Duarte, dos Poetas Ambulantes e do SLAM das Minas-SP).
Desde a virada do século, as páginas da história da Literatura Brasileira, também, foram viradas. Especialmente, o fenômeno dos Saraus, cronologicamente, marcado pelo advento do Sarau da Cooperifa, em outubro de 2001 – que foi um referencial para o surgimento de cerca de cinquenta saraus na década passada, apenas na Capital e na Grande São Paulo – e, seguindo-se a esse boom, a ocorrência dos SLAMs, a partir do Zona Autônoma da Palavra (ZAP), em 2008. Vale lembrar, tais iniciativas se espalharam pelo país inteiro, atraindo as atenções de pessoas, interessadas em literatura, e de editoras e gráficas, atentas a esse nicho de mercado.
É oportuno lembrar que, segundo dados do mesmo estudo da CLB, da edição do ano de 2019, a literatura correspondeu a 18% das vendas; dos quais 5,69% de literatura adulta, o tipo predominante no circuito periférico; decerto que as sondagens da indústria do livro pelo intercâmbio literário no circuito periférico estejam associadas, para além da relevância e da potência dos autores desse segmento, ao aumento no número de vendas do mercado. Corrobora essa assertiva o dado apresentado pela própria CLB em 2020, houve queda de “12%” de vendas de obras gerais para o governo, que é “resultado da redução do PNLD (Plano Nacional do Livro Didático) Literário”; isto é, reduziu-se bruscamente o volume de faturamento de obras desse segmento ao governo federal – “Obras Gerais” (dentre as quais literárias), vale ressaltar, acumulam “queda de 42% em 15 anos”, segundo a entidade.
Em se vendendo menos em um segmento, como o do governo federal, é fácil compreender que os olhos editoriais se voltariam (na verdade, vêm se voltando) ao segmento no qual as vendas podem ser mais promissoras: nas ruas.
Impactos culturais e sociais
O que, obviamente, há de mais expressivo na Literatura Periférica é a democratização dos direitos à leitura e à escrita. A “necessidade universal de ficção” de que falava Antonio Candido, em a Literatura e a formação do homem, não chegou aos extremos da cidade mais rica do país por benevolência do mercado, mas pela resistência de literatos que cumprem seu papel de artistas-cidadãos; isto é, que se engajam na transformação social por meio de ações estéticas e éticas. Em regiões onde mal são garantidos outros direitos sociais ao “povo lindo e inteligente”, que tanto contribui para o crescimento econômico de São Paulo – do estado e do país –, e que, em contrapartida, tão pouco recebe por isso, são os agentes da arte ali produzida (incluindo-se aí o RAP) que exercem o que Antoine Campgnon – em sua famosa palestra Literatura pra quê? – defendia como duas das funções das obras literárias: “deleite” e “instrução”.
A ausência de dados atinentes à produção literária periférica em São Paulo, infelizmente, não surpreende. É de conhecimento geral que, mesmo no mais opulento município brasileiro, há pessoas que têm dificuldades para fazer comprovação documental de benefícios a que fazem jus (e olha que nem estou me referindo, exclusivamente, aos milhares que tiveram dificuldade para provar que precisavam/precisam de auxílio emergencial durante a pandemia, mas a questões outras como aposentadoria, depois de décadas de trabalho), que dirá de cumprir preceitos burocráticos de registros sobre produtos literários. O que seguramente posso afirmar que não são poucos os exemplos de autores que vendem seus livros produzidos artesanalmente, em suas casas, ou por meio de gráficas, não catalogando, portanto, suas obras. Nessa história, quem perde é o Brasil, uma vez que a diversidade literária não chega a todos.
Na cidade de São Paulo, a relevância do fenômeno é tão notável que os festejos e as lutas são marcados por datas de celebração e organização para existência dos autores desse movimento. Existe o Dia da Literatura Periférica (Lei N.° 17.522/2020): 13 de Outubro, data do falecimento de Marco Pezão, outro expoente desse movimento e cofundador do Sarau da Cooperifa, que tem como “objetivo estimular da leitura e estimular a criação e a produção literária através de atividades formativas e culturais”. Ainda em São Paulo, no ano passado, foi criada a Câmara Periférica do Livro (CPL) – Editoras e Selos Editoriais das Periferias de São Paulo: são dezessete editoras e selos editoriais “situados e/ou atuantes nas periferias” da Capital Paulista, objetivando, “além do impacto econômico e de geração de trabalho e renda”, conforme assinala o documento – o Catálogo 2020 da CPL.
É mister registrar que não fazem parte dessa elogiável iniciativa outras tantas de impacto para Literatura Periférica, dentre as quais, destaco: Poesia Maloquerista, Edições UM por TODOS, Selo do Povo, Nóis Por Nóis, SLAM da Guilhermina. E, em um misto de celebração e resistência, há eventos como a Mostra Cultural da Cooperifa, a FELIZS (Feira Literária Zona Sul) –
Sarau do Binho, a Festa Literária na Cidade Tiradentes, a FLIG – Feira Literária do Grajaú, para citar quatro exemplos, nos quais um dos objetivos é possibilitar a divulgação de trabalhos literários de autores do circuito periférico.
Nos extratos educacionais
Como sou morador e professor da rede pública de ensino há, aproximadamente, 20 anos na periferia de cidade, sinto-me obrigado a estender a discussão para elucidar ainda mais ao leitor do Jornal Visão o quão expressiva é a inserção da Literatura Periférica nas salas de aulas e, sobretudo, como é impactante sua contribuição para formação de novos leitores.
Por meio de parcerias que literatos e escolas públicas vêm estabelecendo, a atual geração de estudantes conhece poetas, escritores, contistas, cronistas, dramaturgos vivos – e que, também, utilizam uma língua viva, trabalhada nos labores estilísticos, mas que pertence a seu universo. Como lembra o também professor, poeta e pesquisador Márcio Vidal em sua dissertação de mestrado, sobre o Sarau da Cooperifa na USP: “o público atual não é apenas ouvinte do poema, mas produtor, autor e personagem dele”. Ainda que não se circunscreva ao lócus escolar, a interação com literatos de periferia desperta nos estudantes não apenas o desejo de ler (literatura em todas as suas manifestações), mas, também, a descoberta de si como autor de suas histórias e de suas escritas.
São numerosas as intervenções que os autores e coletivos promovem nas escolas. Sérgio Vaz é um precursor com seu Poesia contra a violência (já indicado ao Jabuti na categoria “Fomento à Leitura”). Há outras iniciativas, como as do Sarau do Binho (também indicado no Jabuti, também por “Fomento à Leitura”), que, ocupando escolas e bibliotecas públicas com intervenções artísticas, são de grande relevância para leitores e autores. A lista seria demasiado grande, mas, sem me estender, há trabalhos tão necessários quanto bonitos, como o promovido pelo Sarau dos Mesquiteiros, desde a década passada, o SLAM Interescolar, articulado pelo SLAM da Guilhermina, e as ações do SLAM DO 13 envolvendo escolas. Aliás, Mesquiteiros e SLAM DA Guilhermina realizam regularmente concursos literários voltados a adolescentes.
Ainda sobre o universo concernente à Literatura Periférica e à escola pública (especialmente da periferia), geralmente a aquisição de livros se dá pelo custeio do professorado e, vez ou outra, por iniciativa da gestão escolar, que, quando entende a importância dos livros de autores periféricos na formação do gosto leitor, enfrenta não apenas barreiras burocráticas para realizar as aquisições, bem como escassez de recursos para ampliar o acervo da unidade escolar. Apesar de algumas tímidas iniciativas da administração pública (em especial, municipal), não raro, é comum que os estudantes conheçam a atual literatura contemporânea, periférica e negra, sobretudo, por meio de exemplares de seus professores, ora compartilhados em leituras nas salas, ora emprestados para leituras em casa, ora doados carinhosamente (pelos mestres ou pelos próprios literatos).
Retratos atuais
Os professores e a formação de leitores
Discorrendo, ainda, sobre a importância da relação professor e leitura, lembro que a pesquisa Retratos da leitura no Brasil 2019 (publicada em setembro de 2020) é, efetivamente, o estudo mais amplo sobre o tema no país. Neste documento, há uma (ipsis litteris) “questão nova” que dimensiona a relevância do educador na formação do gosto leitor a que me refiro: “Como começou a se interessar por literatura…” A resposta mais recorrente foi: “Por causa de indicação da escola ou de um professor ou professora”.
Nesse mesmo levantamento, friso, já aparece (em números menos expressivos) outra motivação para leituras literárias: “Porque foi a Saraus e SLAMs”. Em outras palavras, mesmo que não seja possível pormenorizar neste espaço, a circulação de livros de autores independentes é bastante ampla nas periferias paulistanas em virtude da ação de saraus e slams (poderia inserir, inclusive, as batalhas de rap), bem como da consolidação de parcerias entre educadores e literatos para formar o gosto pela leitura.
Apesar de o discurso comum, em geral, valorizar a educação e o professorado, a liberdade de cátedra, entretanto, não é exercida, pois, mesmo os docentes apontando a necessidade de trabalhar com outras publicações que não as adquiridas sem consulta prévia a quem, de fato, desenvolve o trabalho pedagógico com a leitura (e, somente aqui, não me reporto apenas ao universo da Literatura Periférica), os acordos entre mercado editorial e poder público são antes comerciais do que educativos.
O poeta Sérgio Vaz, em texto publicado pela Folha de São Paulo (06.01.2019), afirma (desde o título) que as “prateleiras gritam por livros que nascem das ruas”. Faço minhas as palavras do poeta e mais: as salas de aulas também gritam por esses – e tantos outros livros que nem sempre chegam aos estudantes.
As perversidades da ausência de diversidade
E antes que alguém possa me acusar de corporativista – do meu lugar de fala como professor ou ativista –, registro que também fico triste pelas dificuldades enfrentadas por grandes livrarias e expressivas editoras – chegando à falência em alguns casos. Mas aí reside a questão que levanto: o mesmo corporativismo que afasta a diversidade dos catálogos – e, por conseguinte, dos leitores, das escolas e das bibliotecas – é, sem dúvida, uma das causas da crise do setor editorial: O fenômeno é complexo para se explicar por apenas uma faceta, todavia, como constatam pesquisas e levantamentos sérios, a opção por publicar um tipo específico de autor, tem relação direta com as dificuldades do setor editorial de hoje; afinal, a literatura que o a multiplicidade de leitores brasileiros procura não pode ser escrita apenas por homens brancos, com mais de quarenta anos, heterossexuais, cristãos.
É um processo de exclusão, aliás, que não atinge tão somente o autor da Literatura Periférica, incluindo-se os artistas da ilustração de grande relevância nesse circuito, como Silvana Martins e Rodrigo Kenan, e todos os outros envolvidos no processo produção e distribuição de livros desse segmento, que têm como fonte ou complementação de renda os trabalhos ligados às obras oriundas da periferia. Mas exclui também o docente, por restringir as possibilidades de trabalho didático, e, de modo mais incisivo, o educando que tem acesso a um leque menor de leituras para descobrir o gosto pela leitura, salvo quando por militância de autores da Literatura Periférica e de profissionais do magistério (incluo gestores de escola e supervisores de ensino que, comprometidos com a mudança por meio da literatura, também, compreendem essa dinâmica).
Enfim…
É urgente que a Literatura Periférica, que tanto contribui para formação do gosto leitor, não seja apenas vista em sua dimensão ética, mas, também, em sua dimensão estética. Como não se faz política pública com boa vontade apenas, é preciso fazer dotação de recursos de modo efetivo e regular para esse segmento de notória importância para história da literatura e, certamente, do Brasil. Paralelamente, é necessário articular um calendário de atividades voltadas à literatura, em especial periférica. Ademais, se faz urgente democratizar de vez a liberdade aos docentes para selecionar obras literárias, em programas de aquisição pública de livros. Tais questões não concernem a visibilizar números e dados da CBL – ou de qualquer outro tipo de levantamento comercial – , trata-se de uma questão de letras na educação e na cultura.
Fábio Roberto Ferreira Barreto é professor (SME-SP) e mestre em literatura (USP).
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