Maputo, Junho de 2025 — Durante dois dias intensos de debates, Moçambique acolheu o Seminário Internacional sobre Recuperação de Activos e Justa Compensação às Vítimas, uma iniciativa promovida pelo Centro de Integridade Pública (CIP), que reuniu especialistas e representantes de organizações da sociedade civil, judiciário e agências anticorrupção de vários países da África e da América Latina. O encontro decorreu num contexto global de crescente preocupação com a fuga ilícita de capitais e a dificuldade de garantir que os bens recuperados cheguem efectivamente às pessoas prejudicadas pela corrupção.

“A sociedade civil tem um papel muito crítico na supervisão dos esforços de recuperação de activos”, afirmou Sheila Masinde, da Transparência Internacional Quénia, ao abordar os desafios do seu país.
A voz das organizações da sociedade civil africana e latino-americana
O primeiro painel destacou a experiência da sociedade civil na recuperação de activos, com intervenções do Quénia, Nigéria, Angola, África do Sul e Brasil.
Do Quénia, Sheila Masinde lamentou o acesso limitado à informação, afirmando que “há muito pouca responsabilização” e que “a falta de relatórios dificulta a monitorização de como os activos recuperados são utilizados”. Reconhecendo avanços legais, Mazinde destacou que “o Quénia tem uma base legal forte, mas precisa de melhorias significativas na transparência”.
“É crucial usarmos ferramentas digitais e redes sociais para monitorar o processo de recuperação e uso dos fundos”, reforçou.
Da Nigéria, Bupar Dimof apresentou um retracto dramático do seu país, onde “há muita gente a roubar” e “uma rede de cumplicidade”. Ele contou casos notórios, como o de um criminoso conhecido por White Lion, que desviou 110 biliões de Naira e cuja acção aumentou a pobreza e a insegurança.
“A própria estrutura legal está nas mãos dos criminosos”, denunciou. “A nossa sociedade civil precisa de ser arrojada, de identificar riqueza inexplicável, como alguém que de repente aparece com 100 cabeças de gado”.
De Angola, Bartolomeu Diogo Milton destacou os obstáculos que a sociedade civil enfrenta.

“Os temas de transparência e boa governação incomodam muito. O acesso à informação sobre activos recuperados é extremamente difícil”, referiu.
Bartolomeu denunciou que, apesar dos milhões recuperados, há “pouca transparência na sua gestão”, defendendo a criação de um “fundo para a reutilização de activos com regras muito bem claras”.

A sul-africana Moira Campbell, da Corruption Watch, sublinhou o peso da corrupção histórica.
“Desde o apartheid que a corrupção mina a democracia. Hoje temos casas de banho em ruínas em escolas públicas”, lamentou. Ainda assim, apontou avanços com a Comissão Zondo e o Fórum Anticorrupção.
“Os fundos recuperados devem ir directamente para as vítimas”, defendeu. “A sociedade civil pode e deve actuar como facilitadora entre o governo e as vítimas”.

Do Brasil, Guilherme France, da Transparência Internacional, descreveu os impactos da Operação Lava Jato e os ataques à sua organização.
“Foi uma história de ataques, dor e sofrimento. Fomos perseguidos pelo mais alto nível da Procuradoria brasileira”, relatou.
France denunciou a “exportação da impunidade” do Brasil para Moçambique e Angola e a “ausência de discussão sobre as vítimas”, observando que o foco das investigações geralmente é o perpetrador, e não quem sofre os efeitos da corrupção.
Judiciário africano partilha experiências e desafios
O segundo painel reuniu representantes do judiciário de Angola, Quénia e África do Sul, debatendo a capacidade institucional e legal para recuperar activos.

De Angola, Marty Olavo Kanando, do Ministério Público, realçou a evolução do quadro legal no país e o papel do Serviço Nacional de Recuperação de Activos (SENRA).
“A nossa legislação hoje permite a perda alargada, abrangendo patrimónios injustificados, mesmo que não haja conexão directa com um crime específico”, explicou.
Ele destacou que, no caso do Fundo Soberano de Angola, os activos desviados foram recuperados através de negociação, evitando longos litígios, e canalizados para o Programa Integrado de Intervenção nos Municípios (PIM).
“O Estado olhou para os cidadãos dos municípios como as verdadeiras vítimas da corrupção”, sublinhou.
Do Quénia, Grace Omweri, da Comissão de Ética e Anticorrupção (EACC), detalhou os mecanismos legais para apreensão de bens e os desafios na aplicação das leis.
“O nosso tribunal já confirmou que temos autoridade para investigar e congelar bens, mesmo sem condenação”, disse. Contudo, alertou para entraves como a interferência política e a ameaça orçamental quando a EACC pressiona demasiado.
“Se incomodarmos os poderosos, o Parlamento pode cortar o nosso orçamento no ano seguinte”, revelou.

Da África do Sul, Robert Walser, da Unidade Especial de Investigação (SIU), destacou o mandato amplo da sua agência.
“Não precisamos provar corrupção. Basta que o contrato viole os princípios de transparência e competitividade”, explicou.
A SIU recuperou 1,6 biliões de rands no ano fiscal 2023-2024 e protegeu mais 2,2 biliões. Walser frisou ainda o poder legal da SIU para aceder a informações sem depender da vontade de outras instituições estatais.
“Podemos colocar empresas e indivíduos na lista negra por 10 anos. Se não cooperarem, enfrentam processos criminais e até prisão”, reforçou.
O caso de Moçambique e a importância da cooperação
O Gabinete Central de Recuperação de Activos (GCRA), criado em 2020, é o órgão moçambicano encarregue da investigação patrimonial e financeira no quadro da Lei 13/2020. Embora possua autonomia, as medidas cautelares e de apreensão devem ser solicitadas por magistrados, o que impõe dependência processual.

O CIP, anfitrião do evento, considera que esta plataforma internacional é “fundamental para reforçar a cooperação entre sociedade civil, instituições judiciais e agências anticorrupção”. O seu papel na assistência técnica ao GCRA e ao Ministério das Finanças tem sido central no esforço de aprimorar a legislação e garantir o uso justo e eficaz dos activos recuperados.
Conclusões e apelos finais
O seminário terminou com um apelo forte à acção concertada entre estados, instituições e sociedade civil:
- Transparência total na gestão dos bens recuperados;
- Independência real das instituições judiciais e anticorrupção;
- Compensação efectiva às vítimas, garantindo que os activos retornem à sociedade lesada;
- Cooperação internacional sólida, sem exportação da impunidade.
“A luta contra a corrupção é uma luta global. Ninguém a vence sozinho. Cada cidadão, cada instituição, tem um papel na construção de um Estado transparente, justo e ao serviço de todas as pessoas”, concluiu o CIP.