Economia
Por que alguns países acusam o dólar de ser uma arma dos EUA

A hegemonia do dólar no sistema financeiro global gera debates, especialmente entre países que o consideram uma ferramenta de pressão geopolítica. A moeda foi consolidada após a Segunda Guerra Mundial com os acordos de Bretton Woods, mas em 1971, os EUA abandonaram o padrão ouro, tornando o dólar fiduciário. Países como Irã, Rússia e Venezuela têm sido alvos de sanções dos EUA, resultando na busca por alternativas como o yuan chinês e até uma possível moeda comum no bloco BRICS.
Por que alguns países acusam o dólar de ser uma arma dos EUA
Do yuan chinês ao bitcoin, as discussões sobre alternativas ao dólar como moeda dominante no sistema financeiro global têm se tornado cada vez mais comuns. Esse debate é alimentado pelo receio de alguns países de que os Estados Unidos possam estar usando a moeda em prol de seus próprios interesses económicos e geopolíticos.
“Mas de onde vêm essas acusações? Eu sou Julia Braun, da BBC News Brasil em São Paulo, e neste vídeo explico em 5 pontos como o dólar se tornou dominante e por que algumas nações acusam os Estados Unidos de usarem a moeda como arma.”
Para começar, um pouco de história:
Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA, em conjunto com o Reino Unido, criaram o padrão ouro-dólar. Essa decisão foi tomada pelos chamados acordos de Bretton Woods, os quais definiram que cada país seria obrigado a manter a taxa de câmbio de sua moeda “congelada” ao dólar, com uma margem de manobra de mais ou menos 1%. Simultaneamente, a moeda norte-americana foi atrelada a um valor fixo do ouro – 35 dólares por 31 gramas de ouro.
Do Padrão Ouro à moeda Fiduciária
Em 1971, os EUA aboliram unilateralmente os acordos e abandonaram o padrão ouro. Essa medida ocorreu em meio a um contexto de inflação global, crescimento económico do Japão e da Alemanha e gastos excessivos por parte do governo americano. Com as reservas de ouro dos Estados Unidos drenadas, o presidente Richard Nixon anunciou o fim do padrão ouro, e o dólar passou a ser uma moeda fiduciária.
O professor Pedro Paulo Bastos, da UNICAMP, explica:
“O que é fiduciário? Vem do romano ‘que se faça’, e tem a ver também com o Fiat money – ‘faça esse dinheiro’ – e fidúcia, confiança. Você determina que seja emitida a moeda e o único limite para o seu uso é a confiança no seu valor, não sendo mais necessário ter um lastro metálico ou em alguma mercadoria específica.”
Autonomia e a consolidação do dólar
Com a transição para o fiat money, os EUA passaram a ter total autonomia soberana para emitir a moeda com base na confiança de seu valor. Isso aumentou significativamente a autonomia de suas políticas económicas, pois não precisavam mais de reservas de ouro para defender o valor do dólar. Além disso, essa autonomia possibilitou que os EUA pressionassem pela remoção dos limites à livre movimentação internacional de capitais.
Essa flexibilização foi fundamental para restaurar o papel do centro financeiro de Wall Street no mercado mundial. Enquanto existissem restrições à livre movimentação internacional de capitais, o crescimento do centro financeiro americano seria limitado. Ao longo dos anos, o dólar consolidou sua dominância de diversas formas.
Um exemplo dessa dominância é o cenário actual: os mercados de títulos dos EUA são os mais líquidos e profundos, considerados os mais seguros do mundo, apesar do risco de calote crescer recentemente. Além disso, o dólar é a moeda mais utilizada nas reservas globais e nas transacções realizadas através do sistema SWIFT – uma rede de pagamentos globais que conecta 11 mil instituições financeiras em mais de 200 países.
Os bancos centrais de diversos países mantêm suas reservas internacionais em dólar e a moeda domina o comércio internacional de commodities, especialmente no mercado de petróleo, onde o valor do barril é sempre precificado em dólares.
Acusações: O uso do dólar como arma económica
Adversários dos EUA, países em desenvolvimento, analistas e até aliados já afirmaram que Washington tem se aproveitado da dominância do dólar para agir em seu próprio benefício. O principal argumento dessas denúncias são as sanções económicas aplicadas pelo governo americano.
Os críticos afirmam que, devido à dominância do dólar, países, empresas, bancos ou indivíduos sancionados pelos EUA podem ser totalmente excluídos do sistema monetário financeiro internacional e do sistema de pagamentos global, dependendo do nível das sanções.
É importante destacar que existem diversos tipos de sanções – económicas, diplomáticas, militares e até desportivas – e que sanções internacionais podem ser implementadas tanto por países quanto por organismos internacionais, como a ONU. A lista de sanções aplicadas pelos EUA é uma das maiores.
Exemplos de sanções e seus impactos
Essas sanções incluem governos estrangeiros como Irã, Cuba, Coreia do Norte, Síria, Venezuela, entre outros. As sanções mais recentes têm como alvo a Rússia, implementadas pelos EUA e aliados como a União Europeia, em resposta à invasão da Ucrânia no início do ano passado. Desde sua aplicação, os principais bancos russos foram excluídos do SWIFT.
Além disso, a Rússia teve cerca de 300 bilhões de dólares em suas reservas internacionais congeladas – quase metade do total de activos russos. No início do conflito, os EUA impediram o Banco Central da Rússia de realizar transacções em dólar e bloquearam totalmente o fundo de investimento directo russo.
Também foram alvos organizações e pessoas ligadas ao presidente russo Vladimir Putin, entre elas Andrey Menichenko, o homem mais rico da Rússia.
A pesquisadora Zongyuan Zoe Liu ilustrou que estar sob as sanções americanas significa basicamente que o sistema baseado no dólar não está mais disponível ou a serviço dos indivíduos, empresas ou regime sancionado.
O alcance das sanções: Impactos e sanções secundárias
Esses impactos vão desde dificuldades com um banco onde se realizavam transacções, passando por problemas para acessar cartões de crédito ou débito, até a impossibilidade de movimentar o dinheiro. Uma analista explicou que um tipo específico de sanção pode penalizar também qualquer um que tente fazer negócio com o alvo principal.
As sanções secundárias atingem indivíduos que, mesmo não sendo o alvo directo, sofrem penalidades se qualquer outra entidade realizar transacções com o alvo sancionado. O caso mais famoso dos últimos anos é o da CEO da Huawei, Meng Wanzhou, acusada por governos ocidentais de facilitar transacções com uma entidade sancionada – nesse caso, o Irã.
Para Vladimir Putin, as sanções financeiras e o congelamento de activos pelo Ocidente equivalem, em suas palavras, a “pisar em todas as normas e regras básicas do livre comércio”. Há ainda quem acuse Washington de usar as sanções – e, por consequência, o dólar – como moeda de barganha em prol de seus interesses.
Acção do Governo Biden e controle das transacções
Em Setembro de 2024, o governo de Joe Biden autorizou bancos a burlarem as sanções contra o Irã e a transferirem a soma de US$ 6 bilhões, bloqueados na Coreia do Sul, em troca da liberação de cinco americanos detidos em um país do Oriente Médio. Washington deixou claro que teria direito de controlar como e quando esse dinheiro seria gasto.
Debate sobre alternativas económicas e novas moedas
Essas acusações, somadas à busca por alternativas económicas mais vantajosas, alimentam o debate sobre o uso de outras moedas. Alguns países procuram mitigar riscos e perdas caso sejam alvo de futuras sanções, especialmente aqueles que já foram penalizados.
Por exemplo, a China tem promovido tratados bilaterais para que as trocas comerciais sejam realizadas em yuan. Por meio de seus meios de comunicação estatais, o governo chinês deixou clara sua ambição de liderar esse debate e tomar parte da liderança americana nesse sector.
Um editorial do China Daily, controlado pelo Partido Comunista, definiu a China como a única economia capaz de promover essa mudança. Pequim também impulsiona o debate sobre alternativas ao dólar dentro dos BRICS. Durante a cúpula anual do bloco, as lideranças de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul discutiram a criação de uma moeda comum para facilitar as transacções entre os membros.
Embora essa decisão ainda não tenha sido implementada oficialmente, ela foi bastante apoiada pelo presidente Lula. Brasil e China, inclusive, completaram a primeira operação comercial realizada totalmente em yuans e reais no início de Outubro – com ambos os governos prometendo repetir a experiência sempre que possível.
Críticas à criação de uma moeda comum e outras alternativas
Nem todos estão de acordo com a iniciativa. O economista americano Jim O’Neill, que cunhou o acrónimo BRICs, classificou como “ridícula” a ideia de uma moeda comum do bloco. Em entrevista ao Financial Times, ele afirmou que o projecto é inviável, pois os BRICS não teriam capacidade de criar um banco central próprio.
Outras potências proeminentes, como Índia e Emirados Árabes Unidos (EAU), já começaram a negociar oficialmente entre si em suas moedas locais. Aliados de longa data, como a França, também realizaram transacções em outras moedas desde que os EUA intensificaram suas sanções. Em Abril de 2024, o presidente francês Emmanuel Macron afirmou que a Europa deve reduzir sua dependência do dólar americano para manter sua “autonomia estratégica” e evitar tornar-se “vassala” de Washington.
Razões económicas e a busca por redução de custos
Há também razões puramente económicas por trás de todo esse debate, como a busca por reduzir custos de transação – incluindo as taxas de conversão que influenciam os preços de compra e venda nas importações e exportações – e diminuir os riscos cambiais, ou seja, a volatilidade da moeda americana.
Segundo especialistas, essa busca por redução de custos e riscos foi um dos factores que levou o Brasil a embarcar nessa tendência. Além disso, a procura por uma forma de se proteger de eventuais ações dos EUA contra importantes aliados económicos também pode ter sido considerada.
Posição americana e as declarações Oficiais
Quando questionada sobre o impacto dos debates sobre novas moedas, a secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, admitiu que as sanções motivaram alguns países a procurar alternativas monetárias – mas garantiu que o dólar permanecerá dominante. Ela também destacou que, embora o dólar tenha registado uma queda de 8% em sua participação nas reservas globais em 2022, essa participação poderá continuar a diminuir à medida que os países busquem “diversificar”.
Os americanos defendem sua política de sanções como justa para punir indivíduos, empresas e países identificados como apoiantes do terrorismo e responsáveis pela proliferação de armas nucleares, violações de direitos humanos, corrupção e outros crimes, com o intuito de preservar a democracia e a estabilidade internacional.
O caso da Rússia e a resposta de Joe Biden
No caso da Rússia, o presidente Joe Biden afirmou repetidamente que Putin “escolheu a guerra” e, segundo ele, “ele e o seu país sofrerão as consequências”. Biden afirmou ainda que a invasão da Ucrânia é uma violação flagrante do direito internacional, que demanda uma resposta firme da comunidade internacional, e que ele havia avisado Putin que isso poderia acontecer antes da incursão.
Biden também declarou:
“Os Estados Unidos não estão fazendo isso sozinhos. Durante meses, temos construído uma coligação de parceiros que representa bem mais de metade da economia global.”
Essa declaração foi feita ao anunciar uma segunda rodada de sanções contra Moscou e seus aliados em Fevereiro de 2022.
Defesa das sanções e comentários de James O’Brien
James O’Brien, diplomata americano do Departamento de Estado e um dos responsáveis pela política de sanções contra a Rússia, defende tais ações como necessárias para preservar a paz mundial. Segundo ele, limitar as capacidades económicas da Rússia é uma das formas mais eficazes e menos nocivas de proteger a Ucrânia e sua soberania territorial.
Em uma palestra no Instituto de Ciências Humanas em Viena, O’Brien disse:
“Agora, notem uma coisa que não estamos fazendo. Nós não estamos buscando prejudicar a população russa ou levar a economia russa ao colapso. Não estamos tomando muitas das ações que estariam disponíveis para nós se esses fossem os nossos objectivos. Não estamos atacando centros empregatícios russos, não estamos buscando ter civis inocentes prejudicados pelo que estamos fazendo. Estamos muito focados nas coisas que mantém a máquina militar e o projecto imperial mais amplo.”
Efeitos colaterais das sanções
Organizações internacionais, como o think tank Instituto Cato, argumentam que muitas vezes as sanções acabam afectando justamente a população, embora essa não seja a intenção inicial. Por exemplo, organizações humanitárias podem enfrentar dificuldades para importar remédios ou processar doações vindas do exterior, e empresas do sector privado que se retiram de países sancionados podem privar a população do acesso a produtos e serviços. Apesar disso, analistas favoráveis à manutenção do status do dólar afirmam que o sistema dolarizado favorece a todos por ser estável e de baixo risco. Eles também argumentam que é mais fácil e conveniente ter uma única moeda para precificar e realizar trocas internacionais, algo que dificilmente outra moeda conseguiria replicar.
Debate sobre a desdolarização da economia mundial
Surge então o questionamento: uma desdolarização da economia mundial é de fato possível?
Para Zongyuan Zoe Liu, há espaço para o crescimento e ganho de influência de moedas alternativas à americana. Ela destaca que a infraestrutura para a adopção de alternativas já está, em parte, definida – trata-se de conectar essas infraestruturas entre si, permitindo que países individuais elevem seus sistemas monetários a um sistema global unificado.
Desafios para um sistema monetário alternativo
Pedro Paulo Bastos comenta que, para que um sistema alternativo se torne um adversário tangível do dólar, é necessário superar uma enorme dependência da economia de redes. Ele observa que o fato de ser necessário estar conectado à rede obriga os países a utilizar protocolos e métodos típicos dessa rede, os quais utilizam o dólar. Esse ciclo reforça e reproduz a dominância do dólar a longo prazo. Segundo Bastos, discutir a criação de moedas comuns não significa necessariamente que se deseja acabar com o dólar, mas sim que se busca reduzir a vulnerabilidade frente a possíveis sanções.
Perspectivas e a realidade da dolarização
Em conclusão, apesar de todo o debate e das discussões sobre a desdolarização, países como Brasil e China ainda se beneficiam da dolarização de suas economias e, provavelmente, não abandonarão a moeda americana tão cedo.