Nos últimos anos, o panorama fundiário moçambicano tem sido marcado por um fenómeno que, a despeito de ser silenciado no discurso oficial, alastra como fogo em capim seco: a venda disfarçada de terras sob a forma de “trespasse”. Essa prática, cada vez mais visível na capital Maputo e nas suas periferias, converteu-se em negócio milionário, alimentado pela fragilidade do Estado, pela captura institucional e pela ganância de redes especulativas que enxergam a terra não como bem coletivo, mas como mercadoria de leilão.
Herança histórica e contradições atuais
A raiz desta crise não pode ser lida fora da história. Durante o colonialismo, a urbe de Lourenço Marques foi rigidamente segregada: os bairros nobres, bem servidos de infraestrutura, estavam reservados aos colonos, enquanto a maioria negra era confinada às periferias carentes. Após a independência, a ocupação massiva das áreas urbanas abandonadas e a expansão desordenada da cidade resultaram em bairros informais, quase sempre sem serviços públicos adequados.
Nas últimas décadas, a globalização e a pressão neoliberal transformaram o Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT) em objeto de especulação. Indústrias e empreendimentos imobiliários instalaram-se em zonas residenciais, muitas vezes sem respeito por licenciamento ambiental ou ordenamento territorial. A lógica do lucro imediato sobrepôs-se ao interesse coletivo.
A base jurídica: entre a Constituição e a realidade
A Constituição da República é inequívoca: “a terra é propriedade do Estado e não pode ser vendida, alienada, hipotecada ou penhorada” (artigo 109). A Lei de Terras (Lei n.º 19/97, de 1 de outubro) reforça este princípio, estabelecendo que o cidadão apenas detém o DUAT, obtido por ocupação costumeira, ocupação de boa-fé ou via concessão formal do Estado.
No entanto, a prática mercantil contradiz a lei. O DUAT, intransmissível por natureza, passou a ser negociado como bem de mercado, em contratos informais ou travestidos em cessões, envolvendo somas milionárias que excluem cidadãos comuns e favorecem elites.
O Código Penal e a minimização da gravidade do crime
No Código Penal anterior (Lei n.º 35/2014), a venda de terra configurava crime autónomo, punido com prisão maior de 2 a 8 anos. Com a revisão de 2019 (Lei n.º 24/2019), o crime foi diluído: deixou de existir como figura autónoma, passando a ser tratado como agravante de burla (artigo 288). A moldura penal caiu para 1 a 3 anos.
Essa alteração não é mero detalhe técnico — representa um afrouxamento da proteção jurídica da terra, transformando uma ofensa grave contra a soberania nacional em simples fraude negocial. O Estado, ao relativizar a pena, envia sinais de permissividade e cria um ambiente de impunidade.
Consequências sociais, ambientais e económicas
O impacto da venda disfarçada de terras transcende o plano jurídico:
- Ambiental: fábricas lançam resíduos em zonas habitacionais, contaminando solos e aquíferos;
- Saúde pública: proliferam doenças respiratórias, infeções hídricas e pragas em bairros onde famílias vivem paredes-meias com indústrias poluentes;
- Social: comunidades são expulsas para periferias distantes, sem hospitais, escolas ou vias de acesso;
- Económico: o mercado especulativo da terra exclui os pobres, fomenta desigualdade e privilegia elites e investidores oportunistas.
Estamos perante uma verdadeira captura do Estado: instituições públicas, em vez de salvaguardar o interesse coletivo, muitas vezes colaboram, aprovando licenciamentos irregulares ou fechando os olhos ao desordenamento.
A revisão da Lei de Terras: esperança ou armadilha?
O governo encontra-se em processo de revisão da Política Nacional de Terras. Entre as propostas estão:
- reconhecimento do DUAT como direito humano e patrimonial;
- exigência de consulta comunitária antes de concessões;
- compensação obrigatória em casos de reassentamento.
Tais medidas podem reforçar a proteção fundiária. Contudo, há riscos claros:
- a transmissibilidade do DUAT, mesmo com restrições, pode abrir espaço para especulação;
- a titulação individual pode fragilizar regimes comunitários e favorecer elites;
- a participação pública tem sido insuficiente, com mulheres rurais e camadas vulneráveis frequentemente excluídas das decisões.
Organizações da sociedade civil alertam: os maiores problemas fundiários derivam menos da lei vigente e mais da sua má aplicação. Alterar a lei sem resolver a corrupção e a falta de fiscalização poderá apenas legitimar o mercado negro da terra.
Caminhos para restaurar a soberania fundiária
Para inverter este quadro, urge que o Estado moçambicano assuma medidas firmes e inegociáveis:
- Restabelecer a venda de terra como crime autónomo no Código Penal, com penas de 2 a 8 anos, reafirmando a gravidade da violação.
- Reforçar a fiscalização e a transparência, criando um registo público acessível de concessões, auditado por órgãos independentes.
- Proteger zonas residenciais e ambientais, impondo licenças rigorosas e proibindo a instalação de indústrias em bairros.
- Punir exemplarmente decisores coniventes, aplicando sanções severas a funcionários que viabilizam negócios ilegais.
- Garantir participação social genuína, com especial atenção às mulheres rurais e comunidades marginalizadas, sob pena de a lei perder legitimidade.
A crise fundiária em Moçambique não é um problema técnico, mas uma questão de soberania, justiça social e dignidade humana. Cada metro quadrado de terra alienado ilegalmente representa um ataque direto ao futuro do país.
Se o Estado continuar refém da especulação e da captura institucional, o território moçambicano converter-se-á num campo de mercadorias, vendido ao desbarato, ao preço de doenças, deslocamentos e destruição ambiental.
A revisão da Lei de Terras pode ser um marco histórico de justiça fundiária — ou um cavalo de Troia neoliberal que institucionaliza o mercado negro da terra. A encruzilhada é clara.
Defender a terra é defender a vida, a saúde, o ambiente e a soberania. É tempo de o Estado deixar as proclamações vazias e assumir, de forma inequívoca, o seu dever constitucional: proteger a terra como património coletivo e inalienável do povo moçambicano.
Exemplos actuais de venda disfarçada de terras (trespasse)
a) Mozal, Matola – terreno industrial
- Um anúncio comercial recente oferece um terreno de 6 192 m² para “trespasse” na zona da Mozal, na Matola, por 3 500 001 meticais. O local está vedado, possui escritório anexo e fica perto da estrada principal. Destinado — ou justificado — para instalação de um painel solar.
(mulimaimob.com)
Análise: Ainda que possa parecer formal, o uso da expressão “trespasse” e o anúncio público revelam fragilidade institucional na aplicação da lei, considerando que apenas o Estado pode conferir o DUAT e não há alienação legal.
b) Matola Gare – terreno de grandes dimensões
- Em abril de 2024, foi anunciado à venda um terreno de 5 000 m² em Matola Gare, à beira da Estrada Circular, por 5 000 000 meticais, claramente identificado como trespasse.
(casamozambique.co.mz)
Análise: A localização estratégica, entre bombas de combustíveis e rotundas, ilustra como o desordenamento e a especulação se associam à transformação do DUAT em mercadoria, contrariando os fundamentos legais.
c) Anúncios variados – entre Matola e Maputo
- No portal Soboladas, diversos terrenos em Matola são anunciados como “trespasse”, com preços variando entre 1.300.000 meticais (tchumene-Matola) e 1.550.000 meticais (zona super arenosa e seca).
(SoBoladas) - Ainda em Maputo, anúncios oferecem terrenos documentados em Chiango (20 × 25), Costa do Sol, Mapulene, com valores entre 675.000 e 1.250.000 meticais.
(SoBoladas)
Análise: O volume e o caráter formal desses anúncios indicam que o trespasse deixou de ser apenas informal ou marginal e tornou-se parte do cotidiano imobiliário, com impactos profundos sobre a transparência e a justiça fundiária.
d) Invasões e redistribuições comunitárias – Matola, Zimpeto e Marracuene
- Em janeiro de 2025, várias áreas entre Maputo, Matola e Marracuene foram invadidas e redistribuídas informalmente — entre elas Tsalala, Intaka, Zimpeto e bairros da periferia. Famílias parcelaram lotes (15×30 m), justificando a ação por falta de segurança e de alternativas habitacionais acessíveis.
(Evidências)
Análise: Esse caso evidencia a insustentabilidade dos sistemas formais de acesso à terra e a emergência de práticas paralelas, como invasões comunitárias, quando o Estado falha em assegurar o direito à habitação e ao uso da terra.
e) Conflito em Matutuíne – 100 hectares contestados
- Em Matutuíne, distrito de Maputo, um conflito de terra envolvendo 100 hectares ganhou notoriedade. Membros influentes da FRELIMO parcelaram e ocuparam terrenos pertencentes a um cidadão que detinha o DUAT há mais de 20 anos, entre 2017 e 2024. O caso chegou ao Tribunal Administrativo, que considerou ilegal a revogação do DUAT por suposto incumprimento.
(Carta MZ)
Análise: Esse conflito representa o extremo da captura institucional do território: decisões de alto nível governamental revogaram DUAT arbitrariamente, parcelaram a terra e favoreceram círculos políticos, colocando o direito coletivo à mercê de interesses particulares.
Resumo comparativo dos exemplos
Localização | Natureza da prática | Consequências legais e sociais |
Mozal, Matola | Anúncio formal de trespasse | Comercialização informal de DUAT; fragilidade legal |
Matola Gare | Venta anunciada de grande lote | Ordenamento urbano comprometido e especulação à escala |
Matola / Maputo diversos | Trespasse em áreas variadas | Normalização irregular; contaminação do sistema fundiário |
Zonas periféricas | Invasão e redistribuição comunitária | Falha estatal leva à ação direta da população vulnerável |
Matutuíne | Conflito político/territorial | Corrupção institucional; conflito judicial e retrocesso jurídico |
Com base nos exemplos
- A mercantilização do DUAT está institucionalizada através de anúncios de trespasse, mesmo em áreas de grande valor ou visibilidade.
- A falta de fiscalização efetiva e a normalização de políticas informais evidenciam colapso do ordenamento territorial em zonas urbanas e periurbanas.
- A gravidade dos conflitos — como em Matutuíne — ilustra como o problema não é isolado, mas sim sintoma de captura sistémica do Estado.
- A acumulação de casos cotidianos (Matola, Maputo) alimenta a alienação da terra e intensifica desigualdades sociais e ambientais.