O dia amanhecera gelado. Uma densa neblina cobria toda a cidade desde as primeiras horas da madrugada, e naquele momento, as 6h30 da manhã, o mundo ainda parecia envolto em uma grande nuvem. Os primeiros raios solares já despontavam no horizonte, mas ainda não iluminavam suficientemente as ruas, e a luz artificial dos postes ainda era a única arma contra a escuridão completa. Mas o sol já estava próximo, e viria iluminar e aquecer um pouco o ar tão gelado da capital mais fria do país.
O investigador Zugreib seguia em seu carro pelas ruas de asfalto remendado, em direção à uma residência no bairro do Capão Raso, um bairro distante do centro, mas muito populoso. Uma chamada de emergência o despertara de um sono pesado, um crime hediondo e muito peculiar havia acontecido e em nada se parecia com o que se estava acostumado no dia a dia, não se tratava de um crime comum, cometido por bandidos ou traficantes.
Ao menos assim foi descrito pela Central.
“É apenas mais um assassinato, como tantos outros que aconteciam a cada hora em uma grande cidade nesse país abandonado e corrupto”, era o que pensava Zugreib enquanto dirigia seu Ford, sonolento ao volante e cansado de tanta violência e horror com que tinha que se deparar todos os dias.
Chegando próximo do endereço recebido, pôde identificar o giroflex piscando em meio à névoa, em cada uma das três viaturas da Polícia Militar.
– Minha nossa, pra que tanta gente? – falou consigo mesmo.
A casa não era muito grande, de alvenaria, e ficava em um lugar isolado em relação às demais casas da vizinhança, bem ao final de uma rua pouco movimentada e mal asfaltada. Fora construída bem no meio do lote de um terreno comprido e baixo, com um muro alto e um portão de placa de metal, todo fechado, o que a isolava ainda mais. No terreno que a divisava pelo lado direito havia um barracão, que ao que tudo indicava estava abandonado, e no terreno do lado esquerdo havia um conjunto de casas germinadas construídas da frente ao fundo do terreno, com os fundos de cada casa na divisa entre os dois terrenos, criando assim um alto muro e isolando ainda mais a casa na frente da qual Zugreib agora estacionava seu carro.
“Esse é o lugar perfeito para um assassinato sem testemunhas”, pensou, de certa forma divertidamente.
Parou o carro entre duas viaturas e saiu cambaleante, mancando em sua perna esquerda recém operada de um acidente de motocicleta durante uma perseguição. Nunca mais subiria em uma. Nunca gostara de motos, e muito menos de perseguições, mas naquele dia, três meses atrás, estava sentindo-se heroico o suficiente para subir em uma moto e voar atrás do suspeito que havia acelerado o carro em fuga. Uma péssima decisão, da qual se lembraria para o resto da vida agora. Uma coisa ao menos ele achava que aprendera com isso: o valor de uma decisão.
– Bom dia Grego! – saudou o policial militar de mais alta patente dentro da casa.
Seu nome em serviço era Zugreib, mas este era apenas o seu sobrenome, e seu primeiro nome era Gregório, mais uma das sacanagens da vida com ele, se bem que seu nome havia sido escolha de seus pais. De Gregório surgiu Grego, seu apelido na força policial. Era conhecido por todos e, diferentemente dos outros investigadores da Polícia Civil, era muito querido e respeitado pelos companheiros militares.
– Bom dia Barroso, o que temos aqui? Me disseram que era algo muito ruim.
– Estranho talvez – Grego pôde notar a expressão de seriedade e pesar no semblante do policial militar – venha, veja você mesmo e decida.
Barroso o dirigiu até um dos quartos. Por dentro a casa parecia maior do que a impressão que tivera assim que a viu a primeira vez, porém estava imunda. Muita bagunça para todos os lados e um cheiro terrível. O costume de sua profissão fez com que Grego tomasse nota mental de tudo o que via ao seu redor: na sala de entrada um sofá de corino surrado e cheio de marcas de cigarro, e outro sofá que parecia ter vivenciado a segunda guerra mundial, cheio de furos e rasgos, com o estofamento saltando para fora. Não haviam quadros, apenas um desenho mal feito em tinta guache na parede maior, contrária à parede da janela, de uma mulher nua e, se olhado com uma certa força de vontade, provocante. “Temos aqui um artista” pensou e sorriu sozinho. O piso era de tacos de madeira, muitos soltos, outros tantos faltando. A iluminação era de uma lâmpada incandescente, muito brilhante aos olhos de Grego àquela hora da manhã. A cozinha era um lugar ainda mais degradado. Uma mesa de tampo de madeira vermelha com pés de metal fino estava entulhada de comida em estado de decomposição, onde larvas dançavam à uma melodia repugnante. O fogão continha três panelas, que ao longe se via que não estavam vazias e imaginar o que havia dentro de cada uma o provocou uma desagradável náusea. A geladeira era uma Prosdócimo antiga, vermelha, com a porta toda riscada, provavelmente de tantas mudanças pelas quais passou. Não queria imaginar o que havia dentro dela, depois da náusea anterior. Deixe que a Polícia Científica colha todos esses detalhes, eles serão mais palatáveis apenas escritos em um relatório.
– É por aqui – Barroso já estava no beiral da porta do quarto.
Toda a casa fedia, mas ali parecia ser o centro fétido de todo o ambiente. Seguiu adiante, acompanhando o oficial e, assim que cruzou a porta, teve certeza do porquê fora acordado tão cedo e com tanta urgência, ao mesmo passo que soube que não dormiria tranquilo por um bom tempo. A visão que se tinha, assim que a porta do quarto era transposta era aterradora. Certamente não havia visto nada parecido até hoje em toda a sua carreira de investigador. Claro que já vira muitas mortes, muitas delas terrivelmente cruéis e hediondas, oriundas de dívidas com traficantes, envolvimento com gangues, vinganças, ou ódio puro e simples. Mas aquilo não se encaixava em nada, era algo elaborado para ser horrível, todo o ambiente fora preparado para ser algo como uma grande e funesta pintura, um cenário macabro e aterrador. Causava repulsa ao ser visto, mas assim que o impacto inicial se desvanecia, parecia haver algo a mais, como se ali houvesse uma mensagem a ser transmitida.
Não era um crime comum, nem um assassinato ao qual estava acostumado. Era algo novo, que só havia ouvido falar no curso de investigador policial ou visto nos filmes de cinema. Um misto de excitação e medo subiu pelo seu pescoço e começou a eriçar sua nuca. Aquilo seria algo mais importante que tudo o que já fizera.
O quarto não era muito grande, mas no canto oposto à porta havia uma mesa e uma cadeira encostados à parede. Sentado à cadeira estava o corpo com a perna direita flexionada normalmente e a perna esquerda flexionada estava atravessada à frente da outra, como se tivesse descansada. O braço esquerdo estava recostado com o cotovelo sobre a mesa e o antebraço e a mão descendo em direção ao colo. O tronco estava recurvado para baixo, com o braço direito esticado sobre a perna direta e a mão chegando até o joelho esquerdo. O corpo estava completamente nu e, como traço mais repugnante, tinha sido decapitado, e estava com a cabeça pousada sobre a mão direita, sobre as coxas. De alguma forma o sangramento fora estancado no pescoço decepado e não havia sangue em lugar nenhum do quarto. Diferente de toda imundície encontrada nos demais cômodos da casa, aquele quarto estava incrivelmente asséptico, como se tivesse sido elaborado como uma cena, um quadro a ser vislumbrado.
– É tenente, pelo menos podemos ter a certeza que aqui há um assassinato. – Grego disse para quebrar a tensão e também seu embaraço com a situação.
– Ele não deve ter sido morto aí, não tem sangue. Depois de assassinado, o trouxeram e jogaram aí nesta cadeira. Pobre coitado.
– Não Barroso, ele não foi jogado nessa cadeira. Nada me parece tão simples assim.
– O que me parece é que se trata de uma luta por poder em alguma gangue. São comuns decapitações em disputa pela liderança de tráfico de drogas.
Grego chegou mais perto do cadáver e notou que várias partes do corpo possuíam uma secreção transparente, na junção com outros elementos. Uma secreção no local onde as pernas se encostavam, outra entre o braço esquerdo e a mesa e outra entre o braço direito e a coxa.
– Ainda não analisamos o que possa ser essa substância, parece-me algo como suor acumulado.
– Não, não tem textura de suor. Isso é cola, algum tipo de cola forte o suficiente para segurar todo o corpo em uma posição pré-determinada.
Olhou então detidamente para o rosto sobre a mão direita, Virada para cima, estava com os olhos e a boca abertos em uma expressão de surpresa. Tinha cabelos compridos e barba farta. Não era ninguém que ele conhecesse, pelo menos não conseguia reconhecer o rosto, a princípio.
O tenente Barroso estava completamente confuso, mas olhava detidamente o amigo trabalhando. Nutria uma grande admiração pelo inspetor Zugreib, o que não acontecia em relação aos demais investigadores da Policia Civil. Geralmente todos mantinham uma expressão de superioridade, uma arrogância de quem estava acima dele. Zugreib não, era um cara bacana, que respeitava seus companheiros e mantinha uma amizade fraterna com todos. Na opinião de Barroso, era o melhor investigador da cidade, mesmo com os reveses que a vida lhe impôs nos últimos meses.
Grego virou-se e viu a expressão de dúvida no rosto do amigo e disse:
– Não trata-se de um crime comum. – e depois de uma pausa analisando a figura – não é algo que já tenhamos visto alguma vez. É algo totalmente diferente.
– Mas é apenas um corpo morto em uma cadeira, já vi milhares destes. Só porque está pelado?
Dando alguns passos para trás, de costas, na direção da porta, Grego olhou para a cena disposta na frente dele, como estivesse se certificando de algo que só poderia ser visto analisando como um todo.
– Não é apenas um corpo sentado, é uma cena elaborada com algum propósito específico. E já vi essa perspectiva em algum lugar, provavelmente em alguma pintura famosa, tenho certeza disso. Me parece mais como se o assassino quisesse passar uma mensagem, de forma cuidadosamente elaborada, e não um crime feito por um bandido ignorante, um qualquer. – virou-se animado, mas ao mesmo tempo preocupado em direção ao tenente – Esse foi um trabalho altamente refinado.
Barroso estava ainda mais confuso.
– Agora vai admirar um assassino é?
– Deixe de ser bobo. Essa é uma situação que podemos passar a vida inteira e nunca ver. É um criminoso com requinte, com um propósito. É como se estivéssemos em um filme, como Silêncio dos Inocentes, ou Seven. Não percebe? É excitante, mas é muito assustador, nunca nos deparamos com algo assim, tenente. – ficou um tempo em silêncio, pensando. – A polícia científica está a caminho?
– Sim, já era para estarem aqui.
– Ótimo, não deixe mais ninguém entrar aqui, feche a porta inclusive. Quero que seja feita uma análise minuciosa de todo esse ambiente, cada detalhe. Se a ideia é passar uma mensagem, então pode haver mais informações importantes em toda essa cena.
– Claro, vou providenciar isso.
Saíram do quarto e o tenente fechou a porta atrás deles, deixando instruções para os soldados de que o ambiente não poderia ser mais acessado, em hipótese nenhuma, até a criminalística chegar. Seguiram então até a porta de fora da casa. Os primeiros raios de sol já começavam a brilhar por trás da ainda pesada camada de névoa que cobria o dia. Grego pegou um cigarro na carteira e colocou na boca, mas não o acendeu. Ficou um bom tempo pensando, do lado de fora da casa, e olhando para o muro da frente, com as luzes dos giroflex dos carros refletindo na névoa.
Ainda estava muito frio.
Virou-se então e percebeu um detalhe que ainda não havia notado. Do lado de dentro do terreno havia um veículo, totalmente incomum ao ambiente ao redor, um carro importado novinho, de alto padrão estava estacionado no local onde deveria haver uma garagem, ao lado da casa e bem na direção do portão grande.
– O que é isso?
– Não temos a menor ideia do que um carro destes está fazendo aqui. Provavelmente seja da vítima.
– Pelo menos vai nos ajudar na identificação do que está ocorrendo. Já verificou a placa?
– Ainda não, você sabe como nada funciona durante a madrugada aqui né? Vão ter que fazer uma consulta mais detalhada assim que o Detran abrir.
Olhando para além do veículo, viu que o restante do terreno, nos fundos da casa, estava totalmente abandonado, com mato crescendo alto. Tudo era muito surreal, não parecia haver ligação entre nenhum dos elementos deste crime horrendo. Mas de algo ele tinha certeza, conhecia aquela cena bizarra em que o cadáver estava disposto, só não conseguia se lembrar de onde. Era algo que já tinha visto e provavelmente em sua própria casa. Um livro. Sim, tinha visto em algum livro. Tinha tantos em casa, e nunca os lera.
– Bom tenente, deixo a cena do crime em suas mãos. Diga para a criminalística que, assim que tiverem o relatório do local, me enviem imediatamente. – e depois de um momento de reflexão – Talvez tenhamos pouco tempo e muito trabalho a fazer.
– Claro Grego, deixa comigo.
Virou-se, jogou o cigarro fora sem que o houvesse sequer acendido, e seguiu para o seu carro. A cena ainda em sua mente, mas agora já começava a se fundir com algo que já havia visto antes, uma pintura, ou melhor um desenho.
Tinha que encontrá-lo logo, quem sabe algumas questões seriam respondidas, ou ao menos alguma direção poderia ser tomada.
Sentiu o primeiro toque do sol em seu rosto. Mas ainda estava muito frio.
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